Publicado em HORA PRESENTE, ano IX, novembro de 1978, No 24.
É muito significativo que os dois últimos artigos de Gustavo Corção, publicados em vida do autor, tenham versado sobre o amor próprio. Todos os autores ascéticos e místicos apontam no amor próprio desordenado a causa que está na origem de se afastar o homem de Deus e o grande obstáculo à perfeição cristã. Além disso, aí também deve procurar-se a raiz da rebelião das sociedades contra Deus, na tentativa insana, de construir a cidade terrena com a glorificação da criatura colocada no trono do Criador. Este é o tema da imortal obra de Santo Agostinho A Cidade de Deus e foi o objeto de meditação de Corção ao escrever Dois. amores, duas cidades. Em face da extensão, por todos os povos, da Revolução mundial, e até mesmo de sua penetração no interior da Igreja, era, nestes últimos anos, o tema constante de suas meditações. Refletia diuturnamente sobre o mysterium iniquitatis e o problema da liberdade, em que Leibniz viu um dos grandes labirintos nos quais a razão se perde e cujo pleno esclarecimento só é possível à luz da Fé. Meditava sobre as vias da Providência na História.
É no livro XIV, capítulo 28 do De Civitate Dei que Santo Agostinho ensina que dois amores construíram duas cidades: o amor de si mesmo até ao desprezo de Deus fez a cidade terrena, e o amor de Deus até ao. desprezo de si próprio faz a cidade celestial.
Muito se escreveu, para penetrar nos arcanos da História, mas nenhum daqueles que até hoje têm escrito acerca do destino dos povos e das. civilizações foi capaz de atingir as profundezas de Santo Agostinho. Ele ergueu uma Teologia da História… diante da qual se esbarram e se· destroem as teologias da revolução, as teologias da libertação e outras quejandas que, pelo endeusamento do homem, o amor próprio suscita nos. cérebros transtornados de tantos desses magistros prurientes auribus de que nos fala São Paulo, “traidores da verdade, protervos e cheios de orgulho” (2Tim, 4, 3 e 3, 4).
Aí está a explicação última da crise na Igreja em nossos dias. Assim concluía Gustavo Corção o segundo de seus artigos sobre o amor próprio.
UM HOMEM VOLTADO PARA DEUS
Quando, em fevereiro de 1973, uma expressiva moção de solidariedade e desagravo era enviada a Gustavo Corção, em face de críticas desabonadoras e injustas, os numerosos signatários daquele documento assim concluíam: “Sabem os que privam de sua amizade que Gustavo Corção parece já não ter outro cuidado senão o do incansável zelo do Serviço -de Deus”.
E com efeito, a preocupação de todos os instantes daquele “matemático tranquilo e polemista vulcânico”, como dele foi dito, era a defesa da sã doutrina católica – das verdades eternas, hoje esquecidas, diminuídas ou adulteradas – e da dignidade da Santa Igreja, reivindicando a sua grandeza contra os que pretendem fazê-la seguir a chamada “corrente da história” ou a desejam ver reconciliada e aggiornata com o mundo governado pelo espírito maligno.
Quis ut Deus? Corção parecia ter nas mãos a espada flamejante do Arcanjo São Miguel ao expulsar do paraíso os anjos rebeldes, seguindo o exemplo dado pelo Divino Mestre quando derrubou as mesas dos vendilhões do templo e os repeliu do lugar sagrado.
Houve quem tivesse visto na ira sagrada de Corção, manifestada tantas vezes, excessos de zelo ou de ultramontanismo (na linguagem de hoje: integrismo). Na verdade, ele reivindicava os direitos de Deus numa época em que só se fala de direitos do homem e não queria ver cair sobre si aquela censura de Santa Catarina de Sena aos homens de responsabilidades na Igreja que se calavam ante os erros, as iniquidades e os abusos espalhados pela sociedade de então: “à custa do silencio o mundo apodreceu”.
Não se conformava em ver o brilho da Igreja, da sua doutrina sem jaça, da sua santidade sem mácula, ofuscado por aqueles que dela se envergonham, ou a tentam rebaixar cortejando o mundo, até mesmo promovendo a sua “autodestruição”, segundo as palavras do Papa Paulo VI.
Não queria ver-se entre aqueles que, deixando a fonte de água viva, cavam cisternas fendidas que não retêm a água, no dizer do Profeta (Jer 2, 13). Ou pior ainda, vão beber a linfa poluída e contaminada de falsas filosofias, de ideologias revolucionárias e de utopias malsãs, misturando-a com a doutrina puríssima guardada pelo magistério da Igreja, através dos séculos, no depósito da Revelação.
É o que não compreendem aqueles que veem em Corção um conservador obstinado ou um reacionário implacável. Conservar, ele quis o que a própria Igreja conserva e conservará sempre, sob pena de se perder a 1mbstfincia dos ensinamentos do seu Divino Fundador, válidos para todos os homens de todas as épocas. Reacionário ele o foi e teria vergonha de não ser, se por reacionário se entende aquele que reage contra as falsidades, as mentiras, as imposturas que sua pena aguerrida desmascarou. Mas nunca um conservador estagnado e retrógrado, jamais um reacionário a serviço do poder econômico ou do poder político, cuja legitimidade ele só reconhecia na fonte de toda a soberania: em Deus, e não no povo. Por tudo isso, melhores palavras não poderiam ter sido ditas a seu respeito do que aquelas do Apóstolo das Gentes, que lhe aplicou Monsenhor Bessa, ao proferi-las quando lhe coube celebrar a Missa de sétimo dia pelo descanso eterno do bravo lutador: bonum certamen certavi, cursum consummavi, fidem servavi (Tim 4, 7). Ou seja: “combati o bom combate, cheguei ao termo da minha carreira, guardei a Fé”.
UM HOMEM VOLTADO PARA A REALIDADE
Gustavo Corção não era um intelectual desencarnado. Homem profundamente ligado à experiência, ao cotidiano, às realidades terrenas. Durante muitos anos entregou-se a serviços de topografia e de astronomia de campo. Dirigiu a instalação de fios telefônicos no interior do país, detendo-se por muito tempo em regiões agrestes e incultas. Tinha muito gosto pela eletrônica, resultando de vivências pessoais o seu livro “As fronteiras da técnica”. Em criança, com sete anos apenas, inventou uma luneta para observar os astros, paixão de toda a sua vida. Já retirado das atividades profissionais, construiu um órgão eletrônico para seu uso pessoal. Voltado para Deus, voltava-se também para as realidades de Deus, no mundo do infinitamente grande e do infinitamente pequeno. O gosto pelo pormenor, pelas pequeninas coisas, pelas particularidades que escapam a muitos, reflete-se nos seus ensaios e artigos.
Nesse sentido, foi como Gustave Thibon. O grande pensador francês, dos aforismos, dos pensamentos que brotam como centelhas de gênio, viveu muitos anos como lavrador no sul da França, na propriedade rural de seu pai, que herdou e onde ainda hoje reside. Tez bronzeada pelo sol meridional da França e mãos calejadas acusam o homem afeito ao trabalho do campo. E tendo apenas o curso primário, estudou por si só o grego e o latim, para depois ler Aristóteles e Santo Tomás no original.
Gustavo Corção foi também um autodidata genial. A semelhança entre ambos não está apenas no nome. Assim é que Corção começou a escrever depois de quarenta anos e daí por diante é que, por um grande esforço pessoal, adentrou nos domínios da filosofia e até da teologia. Até então, havia cultivado a técnica e as ciências experimentais, tendo feito o curso de Engenharia.
Esforço magnífico, coroando a sua genialidade. Esforço que até o fim da vida, até à véspera de ser chamado por Deus, sempre soube despender. Nos últimos anos lia e escrevia com dificuldade, quase cego e quase surdo. Ditava os artigos. E não deixava de escrevê-los para manter a colaboração em vários órgãos da imprensa brasileira: dois artigos por semana.
Assim foi este esgrimista da Boa Causa. Depois de ter sido destro praticante de esgrima na juventude.
UM HOMEM VOLTADO PARA SI MESMO
Noverim me, noverim Te. Ainda com Santo Agostinho, podia dizê-lo Corção. “Meus Deus, que eu me conheça a mim mesmo, e que Vos conheça” … Que me conheça, para me desprezar, que Vos conheça para Vos amar!
O Século do Nada de Gustavo Corção não é apenas uma história do seu século. É também um pouco de história de sua alma. Do itinerário que percorreu, no caminho das ideias. Ele, que, convertido ao Catolicismo, a princípio deixou-se levar pelo pensamento democratizante e de afinidades com o socialismo daqueles “rouges catholiques” que, na França, recebiam o legado de “Le Sillon”: Maritain, o grupo de “Sept”, a revista “Esprit” de Mounier… E que, depois de ter percebido seus equívocos, não teve dúvidas e se penitenciou publicamente. Nas páginas daquele livro e em outras, fez lealmente a sua retratação, como antes já confessara os erros da mocidade, repudiando as ilusões do cientificismo das quais, nos anos juvenis, não soubera escapar inteiramente.
Esta lealdade, esta sinceridade para consigo mesmo, este amor à verdade, são os traços mais luminosos na personalidade e na obra de um escritor que, por tantas facetas, se elevou sobremaneira ao mais alto plano da intelectualidade brasileira e universal. A descoberta do outro e Lições de abismo foram obras que o consagraram.
Além de ser colaborador assíduo de jornais da imprensa diária, Corção escrevia para “Permanência” do Rio de Janeiro, a cujo grupo dava também aulas de teologia e história, e “Itinéraires”, de Paris, a revista dirigida por seu amigo Jean Madiran.
Na amizade que nos uniu e na admiração que sempre lhe votamos, todos nós de HORA PRESENTE, com sentimentos de correligionários fraternais, rendemos à sua memória a homenagem de afetuosíssima saudade, com o propósito de nunca esquecer o exemplo e as lições de um grande mestre.